“Cultive seu jardim”, aconselha Cândido no livro de mesmo nome publicado em 1759 por Voltaire. Esse seria o segredo da felicidade, em que está implicada a ideia de que a desilusão com a vida, a desilusão filosófica, os desenganos em todas as direções que são o outro nome da vida, poderiam ser enfrentados com trabalho e uma comunidade de amigos/as – uma tribo. Como é bem sabido, Cândido contrapõe-se ao otimismo irrefreável e para ele injustificável de seu preceptor, o Doutor Pangloss, e, hippie avant-la-léttre, antecipando-se ao Romantismo do século XIX, à Contracultura do século XX, e à “saída rural”, tão criticada pela teoria revolucionária, encontra felicidade e paz numa fazenda em que se estabelece com amigos/as e em que se cultiva um jardim.
A ideia de um jardim a ser cultivado traz consigo, ainda, a necessidade de, em um mundo repleto de misérias, buscar-se consolo não em esperanças abstratas e futuro-utópicas (no que antecipa 1968, em parte, também), mas em uma cosmovisão pragmática, sustentada no trabalho (e sobretudo no trabalho manual, o que lembra as tradições do Oriente) e em que haja a valorização das relações humanas próximas.
Com Fernando Pessoa (Ricardo Reis), já no século XX, voltamos a encontrar um jardim: “Segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas. O resto é a sombra de árvores alheias.” Ainda que tenhamos, aqui, também o apelo a uma cosmovisão pragmática – “A realidade sempre é mais ou menos do que nós queremos. Só nós somos sempre iguais a nós-próprios” (Vitor Ramil: “Viver é maior que a realidade”) -, temos também, ao contrário do que ocorre em Voltaire, o elogio da vida solitária: “Suave é viver só. Grande e nobre é sempre viver simplesmente.”
Heinrich Heine, com quem recuamos até o século XIX, mencionou também um jardim em relação com a felicidade, mas com um toque levemente ácido: “Meus desejos são: um humilde chalé com telhado de palha, uma boa cama, boa comida, leite fresco e manteiga, flores à minha janela e algumas árvores à minha porta. E, se Deus quiser tornar minha felicidade completa, me concederá a alegria de ver seis ou sete de meus inimigos pendurados nelas.”
Tolstoi, também no século XIX, mas um pouco mais à frente, por sua vez, em seu anarquismo singular, prescindiu de qualquer método: “Se tu queres ser feliz, seja!”, insinuando que uma decisão, um corte, uma intenção, um gesto, um giro da mente, um pinote do espírito, é tudo quanto basta. Não sei, pode ser. Contemporaneamente, Byung-Chul Han escreveu um livro (2018, no Brasil 2021), talvez o ainda menos conhecido de seus livros, chamado “Louvor à Terra – Uma viagem ao jardim”, contando, filosofando e poetizando sobre o profundo sentimento de nostalgia de que foi em certo momento acometido, sentimento esse associado à necessidade de buscar uma imersão no mundo natural – a partir do que se dedicou à jardinagem, em uma experiência de três anos inteiros; a seu “jardim secreto”, como chamou. À experiência do cuidado para com a natureza e do aprendizado e percepção de seu poder de criação e de renovação. Uma obra – e aqui está uma sugestão de leitura – anterior à pandemia, mas que só ganha em densidade e significação se lida hoje, após a pandemia.
No exercício de escrever – cultivar – este texto, lembrei também de Tom Zé, que em um momento de dificuldades financeiras precisou tornar-se jardineiro, e que, hoje, vencidas aquelas dificuldades, incorporou a jardinagem à sua vida cotidiana, filosofando sobre isso com não menos potência que Byung-Chul Han. O que são esses esforços, esses espectros, esses jardins espectrais? Um espectro ronda a vida dedicada à mercadoria: é o espectro de um jardim. Um eco – mas não só isso – daquele de que fomos expulsos?