E se a vida for uma espécie de brincadeira como aquela em que se ligam pontos com um lápis para que se revele uma figura, caso em que cada ponto seria um elemento de nossa mitologia particular (as histórias que contamos para nós mesmos, a "espécie fabuladora"), e a figura a narrativa "mitológica" toda? Mais: os pontos a serem ligados já estariam dados a priori, quer dizer, a figura final já estava potencialmente presente, só precisamos conhecermo-nos, reconhecê-la, ou a cada o vamos desenhando os pontos, improvisando, esboçando a figura final, mais ou menos como aquele coiote do Papa-Léguas que ia caminhando no espaço vazio e só caía no precipício quando se dava conta de que não estava mais em terra firme? Ou é um pouco das duas coisas, sei lá? 99,9% das culturas que habitaram/habitam este Pálido Ponto Azul marcariam cruzinha na primeira alternativa (o sentido do mundo nos é anterior), mas vou dar de barato que nós, modernos ou pós, é que estamos certos (os sentidos do mundo são criados, inventados por nós), e acreditar que somos "livres" – bem, mais ou menos...
Somos livres? Jean-Paul Sartre escreveu que "nunca fomos tão livres como quando sob o nazifascismo", querendo dizer que, ali, não havia nenhuma possibilidade de escolha, de indecisão, de hesitação, de dúvida, a nos angustiar, a nos limitar: sob o nazifascismo, só havia a alternativa de entrar para a resistência, sem mais. Ponto. Sem possibilidade de escolha, éramos, portanto, livres.
Somos livres? Circunstâncias como a descrita por Sartre seriam uma exceção? Ou, como queria Walter Benjamin, são a regra? Na linha de abertura de “O Contrato Social”, de 1762, Jean-Jacques Rousseau escreve palavras assombrosas: "O homem nasce livre e por toda parte encontra-se acorrentado.” Com uma argumentação de tipo filosófico-antropológico, Rousseau argumenta que, em “estado natural”, somos livres – somos “bons”, até que a “civilização” se imponha e faça a (verdadeira) maionese desandar. Apanhemos Karl Marx, por exemplo – que é rousseauneano em vários aspectos: há, nele, também, algo que sobrevém e azeda o leite da humanidade, mas é algo mais específico: são os grilhões do capitalismo.
Nesse sentido, e no contexto destas formulações, Sigmund Freud é o contrário: em essência, somos egoístas – “maus”. E o “contrato social”, por mais frágil, contraditório e causador de um “mal-estar de fundo” que seja, permite que nos civilizemos e possamos viver em sociedade. E o ego (que tem de lidar com o inconsciente, com o superego e com os outros – o inferno - e o mundo), que lute. Somos livres? O já aparecido aqui Sartre diria: “A existência precede a essência.” Ou seja: não somos nada, nem bons e nem maus, em essência. Pode ser que nem haja “essência”, uma “natureza humana”. O que importa é que a existência, nossa história, vem primeiro, e seremos o que escolhermos ser (para Sartre, há sempre escolha). Sartre (como Foucault, nesse caso) cria os pontos que irá ligar para que a figura se revele – e cria a própria figura.
Somos livres? Não sei. Eu acho que tem amarras que dá para desamarrar, amarras que só dá para soltar um pouco, e amarras que “deixa pra lá”. O que sempre é possível fazer, porém, isto é certo, é olharmos para as estrelas, e uns para os outro/as, e partilharmos nossa perplexidade, como fazem o Charlie Brown, o Snoopy e o Woodstock. “Que puxa!...”