Fotografar é uma arte — e como toda arte genuína, exige prática, sensibilidade e compromisso. Mas há uma dimensão ainda mais profunda: a fotografia que expõe o que muitos não querem ver, que denuncia o que permanece invisível. Ainda me recordo das aulas de Reportagem Fotográfica, em que minha professora falava com paixão sobre o “instante decisivo” — aquele momento exato em que a imagem transcende o registro e se torna testemunho. Era inevitável que, nessas aulas, surgisse o nome de Sebastião Salgado.
Sebastião nos deixou nesta sexta-feira (23), e com ele se vai um dos olhares mais agudos, humanos e incômodos da história da fotografia. Sua obra, quase toda em preto e branco, não coloria nem suavizava a realidade. Pelo contrário: escancarava a desigualdade, o sofrimento, o abandono. Foi também um incansável defensor da justiça social, dos povos originários e do meio ambiente. E não apenas pelas lentes — ele e sua esposa, Lélia, fundaram o Instituto Terra, responsável por um dos maiores projetos de restauração ambiental da América Latina.
Segundo O Globo, o Instituto já plantou mais de dois milhões de árvores na Mata Atlântica e recuperou cerca de 2.500 nascentes. Em 2024, foi anunciada a meta de restaurar outras quatro mil, dentro do programa Olhos D’Água. Mais do que reflorestar, o projeto promove desenvolvimento rural sustentável e devolve dignidade a uma região exaurida.
É impossível não enxergar a ironia cruel desta semana: ao mesmo tempo em que perdemos uma das maiores vozes na luta pela preservação do planeta, o Senado aprova o Projeto de Lei 2.159/2021, que flexibiliza o licenciamento ambiental. Mesmo com fortes críticas do Ministério do Meio Ambiente e de organizações como a Transparência Internacional, a proposta avançou — e agora retorna à Câmara dos Deputados.
O PL enfraquece o controle público sobre atividades com potencial de destruição ambiental. Legaliza a lógica do “confie no empreendedor”, mesmo em áreas sensíveis, como territórios indígenas e regiões de mata nativa. Ignora o princípio do não retrocesso ambiental, fere a Constituição e silencia o que a ciência e a sociedade civil vêm alertando há anos.
Sebastião Salgado ou a vida registrando o impacto da ação humana sobre os mais vulneráveis. Suas imagens são um grito que não se apaga. Já o PL 2.159/2021 é o exemplo de uma política que prefere calar — calar a floresta, os rios, os povos, a biodiversidade.
Que a morte de Salgado não simbolize o fim da luta, mas o fortalecimento dela. Que sua obra continue a iluminar o caminho de quem acredita que justiça social e ambiental não são obstáculos ao progresso, mas a única forma real de alcançá-lo. E eu acredito que possamos inovar, sem devastar.