Minha irmã, em nossa infância, tinha, num canto do seu imenso guarda-roupas, uma rara e cobiçada “Coleção de Coisas Grandes e Pequenas”. Aquele pedaço do seu mundo nos provocava ciúmes e curiosidade. Ninguém podia chegar perto das relíquias que eram exibidas aos poucos... a conta-gotas... pela avarenta trançuda. Pequenos bibelôs e estatuetas gigantes, lasquinha de vidro e enorme pedra brilhante, microscópicos sapatinhos e calçados descomunais - uma reunião de objetos fantásticos. Havia encanto, sonhos, surpresas, gosto pelo desconhecido e uma tremenda indiscrição de nossa parte, ainda que infantil.
Oh! Que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
- Que os anos não trazem mais!
Oh! Que saudades dos “Meus oito anos” e de decorar Casemiro de Abreu! Ai que saudades de, sorrateiramente, trair a confiança da minha irmã egoísta e adentrar na sua intimidade.
Pois todos esses males, essas dores, esses arrependimentos, esse sabor amargo do ado, desapareceram em golpe de mágica quando pousei meus olhos, minhas mãos e meu nariz no “Gabinete de Curiosidades”, magnífico livro de poesias de Gilberto Schwartsmann.
A obra, dividida em cinco partes – “Lunetas e microscópios”, “Chifres e unicórnios”,” Globos terrestres”, “Objetos vindos da Índia “e “Conchas e outros objetos marinhos”, me transportou da enorme casa familiar ao maravilhamento dos “Gabinetes de Curiosidades”, dos imensos castelos do século XVII, entre reis, princesas e fadas.
Viajei ao ado, revivi aniversários, refiz traquinagens e li poesias como há muito não fazia. A prosa empilhada em doces versos, as vezes dolorosamente verdadeiros, despertou algo distante que havia ficado para trás. Aos poucos, fui tendo a certeza de que não morrerei como o poeta russo Iessiênin, que em situação de
Extrema dramaturgia:
Enforcou-se com seus versos,
Nos tubos do ar-condicionado,
Bem no coração de Leningrado.
A arte reconfortante, romântica, vivaz e às vezes revoltada, do querido amigo, tem o dom de abrandar as doenças da alma com mesma eficiência e gentileza que o grande médico faz com os males corpo, que ao fim – como indica o Livro Sagrado - às cinzas voltará.
Quando o homem sofre,
Sofrem tantas almas de seu ado!
Adão, por não desconfiar de nada,
Eva, por ver malícia em tudo.
Em alguns versos a inconformidade juvenil aflora e persiste acesa, indignada, no coração do homem maduro, avô surpreendente. Como surpreendentes são, também, suas rimas amorosas, sempre com endereço certo - Leonor.
Com infinita beleza,
Faz do objeto comum um anel,
O compromisso de amor revela:
Sem nada dizer, diz que quer se casar com ela.
Não guardo por Gilberto a inveja que tinha da minha irmã, no ado. Mas guardo por ele, sim, um amor fraternal, sem tanto tempo, porém, cheio de justificativas.
Eu invejo os escritores
Que vivem vidas não vividas,
Mentiras e amores.
Por fim recomendo, não deixem de ler “Gabinete de Curiosidades”, uma exemplar publicação da Editora Sulina, que, desde a ilustração de sua capa, é altamente sugestiva. E mais - de forma alguma pulem o prefácio “A experiência humana e a estética do maravilhamento”, de Rafael Bán Jacobsen, outra peça de rara beleza a ser bem guardada na caixinha da memória. Experiências de leitura, como essa, não podem ir embora “com asas de arinho” – necessitam adormecer em nosso coração e ali criar encantamentos.
Dr. Alcides Mandelli Stumpf
Médico, Membro da Academia Erechinense de Letras, Vice-presidente da A.A. da Biblioteca Pública do RS.