Com a chegada do Inverno, às sombras do segundo ano de pandemia, entre balburdias, embates políticos e radicalizações de toda ordem, o Sapateiro de Bruxelas, está arriado, quase dobrando o Cabo da Boa Esperança - como se falava no ado.
Para o artesão - que optou por uma catarse em sua live semanal - o sentimento predominante é o de participar de uma festa ou comício político sem ser militante ou convidado: todo mundo grita, pula, esbraveja ou se esgarça de rir, e ninguém dá bola pra ninguém. O último elo persistente da vida comum é a solidão do isolamento sanitário em frente à TV e seu rosário de desgraças.
Isso desperta grande desconforto pessoal no velho belga e abate seu espírito alegre e vivaz. Percebe que ou a existência inteira sem que nada de muito importante tenha feito e que nada de grave ou de extraordinário aconteceu perto de si, a não ser a maldita pandemia.
Sua vida pretérita, minúscula, se resume a um mar de absoluta normalidade - com direito a pequenas marolas insignificantes. O que o transforma em um ser inútil, e o faz sentir como um atol perdido e árido.
Considerando sua irrelevância, desistiu da busca à perfeição. A autossuficiência (algo tão banal em tempos idos) ou a ser seu horizonte e destino no oceano da indiferença. Não precisa mais provar força ou caráter, como fazia antes, quando não confiava nos outros e tampouco em si mesmo.
Para o artífice medos, receios, pressões, prevenções e perversões se diluíram nas turvas águas da experiência. Tudo, por ele, já foi feito ou experimentado. Bem ou mal feito. Bem ou mal experimentado, se não sentido, bem imaginado.
Confessa que diminuiu o sal da comida, e o regime alimentar agora é permanente. Sente na carne, no corpo e nos ossos, dia após dia, que se firma de vez o vital ime físico, fisiológico e filosófico entre o ado épico, o presente lírico e o futuro dramático.
Assume, resignado, a condição de alienado mental sem maiores pejos ou cerimônias - até com certo orgulho. Aceita bem as limitações intelectuais, o fim dos ideais e a confirmação do absurdo existencial. Nada o desagrada ou desgasta. Nada o faz mais ou menos feliz.
Não lhe interessa agir ou reagir. Conforma-se em torcer que as coisas fluam bem e do modo mais simples. Amorfo, aguarda por melhores dias e notícias, talvez para o final do ano.
Porém, no decorrer da fala o mestre recupera a alegria, espanta os maus espíritos e agouros, e em tom de conforto e galhofa, afirma que nem tudo é tão ruim no entardecer da sanha vital: suas articulações enrijeceram, mas sua moral ficou mais elástica; seus pensamentos deixaram de ser obrigatórios ensaios mentais que precedem o seu falar e fazer. Os pecados, que o atormentavam quando jovem, se reduzem a esparsas ausências de juízo que não fazem mal a ninguém. Paradoxalmente, o fardo da vida madura lhe é mais leve.
Ao encaminhar o final de sua prédica, enfático e com o bom humor refeito, exorta a turma do café a reagir. Enfim, entende que é seu dever e obrigação assegurar que há mais vantagens que desvantagens com a chegada do inverno e da velhice. Sinceramente espera que tal aviso chegue antes que alguém de faixa etária mais elevada cometa suicídio ao sintonizar sua palestra eletrônica.
Destaca que entre as primazias conquistadas pelo avançar da idade algumas são preciosas e irrefutáveis, como vagas em estacionamentos, atendimento preferencial em bancos, lotéricas, farmácias e caixas de supermercados, além das demais merecidas e respeitosas regalias. Isso quando estes estabelecimentos não são invadidos por hordas de analfabetos ou deficientes cognitivos que sequer conseguem decifrar avisos escritos ou desenhados.
Também informa que para ele não há mais limites claros entre o certo e o errado, o céu e o inferno, o bem e o mal.
Conta com maior confiança no taco e lida melhor com as pessoas piores e circunstâncias avessas. Vive com intensidade os pequenos e grandes prazeres que, aos poucos, vão rareando junto com os cabelos.
Embora mais distraído, tem consciência que o tempo enalteceu suas virtudes e defeitos: objetividade, intolerância e barriga aumentaram. Pessoas “espaçosas” e egos inflados foram postos de lado, elogios provenientes de crápulas ora soam como insultos e são prontamente revidados à altura – algumas vezes por farpas afiadas, outras tantas por gentilezas de mesmo quilate.
Realça – ao encerrar sua fala - que seus interesses pessoais persistem fortes, rígidos e dirigidos àquilo que legitimamente o entusiasma e lhe dá prazer. E que ao olhar pelo retrovisor da vida, constata: teria obtido melhores resultados e eficácia sem as intervenções da ética alheia, dos bons costumes limitadores e do odiento politicamente correto.
Por fim, já de olho na primavera, o Sapateiro de Bruxelas chega à conclusão de que ainda há muito a ser feito. E diz a que a turma do cafezinho deve seguir o seu exemplo e viver como se todo o dia fosse o último. Com a certeza definitiva de que, em algum momento – ele e cada um de nós - acabaremos por acertar.
O grande Millôr Fernandes, certa vez escreveu: “Entre o riso e a lágrima há apenas o nariz”.
Médico
Membro da Academia Erechinense de Letras
Vice-presidente da A.A. da Biblioteca Pública do RS