Como é facilmente observável, o Sapateiro de Bruxelas considera-se um aficionado de carteirinha da Mitologia Grega. Usa e abusa do tema para desenvolver suas tradicionais lives - enquanto durar a pandemia. Tem se dirigido aos amigos do cafezinho, plateia cativa, de forma virtual há mais de ano.
Pois, conta o calçadista que Apolo, o mais belo dos deuses do Olimpo, senhor da Arte, Música, Medicina e Profecia, além de protetor dos atletas e dos jovens guerreiros, meteu-se em mais uma boa enrascada.
Narra o mestre, que o deus andava feliz da vida, ciente da própria beleza e confiante no seu taco, por ter abatido a terrível serpente Píton, que da sua caverna no Monte Parnaso, assustava os habitantes daquelas paragens.
Recorda que em divina homenagem, no local do extraordiário embate, ergueu-se o Oráculo de Delfos, como detalhado minuciosamente em palestra anterior.
Comenta ainda que Ovídio, poeta romano que viveu entre os anos 43 a.C. e 18 d.C., refere na sua coleção de poesias eróticas Metamorfoses, que o arrogante Apolo, ficou irritado ao flagrar o pequeno Cupido, deus do amor e filho de Marte e Afrodite, a brincar com seu poderoso arco e flecha. Aqui, o preletor, filólogo por natureza e gosto, lembra a seus espectadores que a palavra “erótico” advém de Eros, o mesmo Cupido, entre os gregos.
Na sequência – segundo a versão do calçadista – furibundo e espumando de raiva, Apolo repreendeu o levado menino com duras palavras: “Que queres tu, pequeno fedelho, a manusear armas mortíferas? Deixe-as para mãos de quem delas seja digno. Contenta-te com seus inofensivos brinquedos de criança, e não se atreva mais a tocar em minhas armas novamente”.
Cupido, filhote mimado do divino casal, ao ouvir a dura advertência apolínea, não deixou por menos e retrucou à altura: “Tuas setas podem ferir todas as coisas, e com isso até concordo. Mas não esqueça que as minhas também podem ferir-te, formoso e pedante mancebo”.
Não satisfeito, o pequeno gênio infantil – cuja imagem se assemelha a um rechonchudo anjinho barroco – decidiu revidar e partiu para vingança ainda maior. Para mostrar superioridade o incauto infante lançou duas de suas pequenas setas: uma de ouro – com o poder de atrair o amor – sobre o coração de Apolo; outra de chumbo – que afastava o amor – dirigida ao doce coraçãozinho da ninfa Dafne, filha do rio-deus Peneu.
Aqui o velho belga abre um necessário parêntesis em sua fala e novamente explica aos amigos do café, que o vocábulo dafne, vem do grego e significa loureiro, árvore da família das lauráceas também vulgarmente chamado pé de louro.
Ferido de amor por Cupido, Apolo foi tomado de inflamada paixão pela linda Dafne e ou, explicitamente, a dar em cima da esbelta moçoila. Ela, por sua vez, permanecia firme em seu propósito, e, portanto, avessa a todo e qualquer tipo de impertinência, intimidade ou achego mais forte – inclusive provindos do magnífico jovem.
Loucamente enamorado e completamente fora de qualquer controle, Apolo ou a perseguir Dafne por onde quer que ela andasse. Até que um belo dia, desesperada e sem rumo, a formosa resolveu fugir para floresta no intuito de evitar o descarado assédio do divino pretendente.
Relata o coureiro que quando o vigoroso Apolo estava prestes a alcançar seu objetivo de agarrar, beijar e dizer o quanto a amava, Dafne avistou seu pai no meio do arvoredo. A filha desesperada dirigiu-se a Peneu e rogou que a salvasse mudando-lhe a forma do corpo para que o impetuoso e inconveniente candidato finalmente a deixasse em paz.
Peneu, como todo bom pai, fez o que a filha pediu... E quando o deus do Sol estava quase a tocar-lhe os cabelos, Dafne sentiu um torpor estranho apoderar-se dos seus membros: seu corpo revestiu-se de casca, seus cabelos transformaram-se em folhas, seus braços transmutaram-se em galhos e os pés cravaram-se na terra, qual raízes. Impotente e completamente inoperante frente à metamorfose da amada virada em arbusto, Apolo abraçou-se aos ramos e beijando ardentemente a árvore falou:
- Já que não podes ser minha esposa, serás a minha planta preferida e eternamente me acompanharás. Usarei as tuas folhas sempre verdes como coroa e participarás em todos os meus triunfos, consagrando com a tua verdura perfumada as frontes dos heróis.
E foi assim que o loureiro ficou associado ao belo e luminoso deus, símbolo do seu incontido amor por Dafne - conta o Sapateiro.
A partir daí a coroa de louros, láurea ou coroa triunfal, foi associada a Apolo e às supremas distinções concedidas às glórias terrenas. Grandes figuras da humanidade, incluindo os Césares, Dante, Napoleão, entre outros a usaram. E até hoje nos Jogos Olímpicos e noutras conquistas esportivas, constitui parte cobiçada do prêmio maior.
Informa o mestre que Apolo e Dafne tiveram seu encontro eternizado em diversas obras de arte. Dentre essas, para o fino gosto do artesão, destaca-se a mais famosa escultura de Gianlorenzo Bernini (1598-1680), expoente do barroco italiano. A obra, feita de mármore e em tamanho real, encontra-se na Galleria Borghese em Roma, e faz parte de uma série de esculturas encomendadas pelo vaidoso cardeal Scipione Borghese, sobrinho favorito do Papa Paulo V.
O veterano amigo nos confessa que vai ao pequeno e rebuscado palácio todas as vezes que visita a cidade eterna. Ali não cansa de irar a magia de Bernini que consegue inserir o observador na ação de um realismo fantástico e chocante. O modo desesperado com o qual Dafne tenta fugir de um Apolo alucinado, no exato momento em que a ninfa se transforma em um loureiro para ser protegida, confere a ilusão de movimento dos corpos, cabelos, tecidos, galhos e folhas. Algo etéreo, deslumbrante e incrível, leva o artesão a um estado onírico no qual todo o sofrimento humano é transfigurado e por ele sentido – assegura o artífice, com os olhos brilhantes, emocionado.
A arte barroca, opulenta, exuberante e por vezes extravagante, neste caso específico evoca deliberadamente uma incômoda assimetria de gênero – lamenta o belga. O libidinoso Apolo, transtornado, constrange a casta e frágil Dafne em fuga apavorada.
Mesmo assim - para o bruxelense - esta é mais uma linda história de um amor impossível. E talvez seja a versão primordial das milhares que surgiram no decorrer dos séculos na literatura. Shakespeare, Tolstói e Machado de Assis são alguns expoentes universais que confirmam a tese do belga.
Embora Apolo seja reconhecido pela beleza e lírica, a maior parte de seus casos de amor terminaram frustrados. Certamente pesou contra a sorte do filho de Zeus, a soberba, a vaidade e respostas emocionais deveras intensas e desajustadas. Houve por certo, falta de capacidade de entrega total ao amor e também de aceitar docemente o “não” da pessoa amada quando rechaçado.
Ao encerrar, o Sapateiro de Bruxelas evoca “o poetinha” Vinicius de Moraes – que de barroco não tem nada, embora seus versos provoquem intenções igualmente arrebatadoras - e seu famoso Soneto da Fidelidade que encerra com a antológica metáfora do terceto final:
“Eu possa me dizer do amor (que tive):
que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”
Médico,
Membro da Academia Erechinense de Letras,
Vice-presidente da A.A. da Biblioteca Pública do RS.