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O Sapateiro de Bruxelas: Virtudes, Pecados e Fofocas 4i6ap

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Alcides Mandelli Stumpf
Por Alcides Mandelli Stumpf
Foto Rodrigo Finardi

Para o Sapateiro de Bruxelas, que é uma boa alma de Deus, todos, até os mais falastrões, guardam alguma virtude, certo traço de caráter merecedor de iração, quer seja do ponto de vista moral, intelectual ou apenas frente a uma situação específica de conduta.

Constata o coureiro que as virtudes variam com o tempo e ganham brilho de acordo com as respectivas épocas em que são praticadas, de acordo com as necessidades culturais vigentes. Como afirmou em oportunidades anteriores, humildade, caridade, resignação e castidade, tão caras ao cristianismo, certamente seriam execradas como virtudes pelos gregos clássicos. Na Grécia Antiga, que o mestre tanto aprecia, os valores eram diversos e predominavam as chamadas virtudes cardeais platônicas, como coragem, temperança, sabedoria e justiça. Lembra que Aristóteles pregava a magnificência do homem magnânimo como um bem em si, constituindo esta a maior de todas as virtudes.

Recorda, em ato contínuo, que Tomás de Aquino, mais tarde, na Idade Média, procurou sintetizar as concepções cristãs e gregas, ao priorizar a benevolência generalizada.

No Século XVII o filósofo inglês David Hume disse que uma virtude constitui certo traço de caráter com o poder de produzir amor ou orgulho a seus detentores, resultando útil e agradável para eles mesmos e para aqueles que por eles são envolvidos. Já o prussiano Immanuel Kant, considerado por muitos o principal filósofo da Era Moderna, no raiar do Século XIX, é bem mais curto e grosso: a virtude é apenas um apêndice do indivíduo, e funciona como mero auxiliar no cumprimento do dever, não tendo, portanto, qualquer valor ético independente.

Como é bem do seu estilo e gosto, o velho artesão faz uma curva enviesada em suas digressões e lembra que, na contramão do esplendor das virtudes cristãs, surgem, com toda pompa e alegorias, os correspondentes pecados que insistem em atordoar as nossas existências.

Os pecados, por definição, propõem ações morais que permeiam a desobediência, a depravação, a maldade, a infâmia e perversidade. Portanto, ensina o belga, estão muito além do reles conceito de má ação ou feitio da coisa errada.

Recorda o velho Sapateiro, que o primeiro pecado que se tem notícia é o Pecado Original, cometido por Adão e Eva ainda nos primórdios do Paraiso Terrestre. Tal falta oferece até hoje razões de sobra para os crentes se sentirem envergonhados unicamente por terem nascido, e é um dos principais ingredientes de várias seitas cristãs.

O modo preciso e exato de como se deu a transmissão da culpa de Adão a todos seus descendentes (inclusive os queridos amigos de cafezinho) tem ocupado – e muito – sábios de todas as eras e paragens.

Para Santo Agostinho de Hipona, teólogo do Século IV, por exemplo, o maldito legado surge como consequência da reprodução sexual e do desejo intenso que a acompanha. São Tomás de Aquino, frade italiano do Século XIII, já citado, bem mais bonachão, gorducho e benevolente, entende que não é tanto o pecado em si que é transmitido, mas a perda da capacidade extraordinária de controlar os aprazíveis apetites inferiores.

De qualquer forma - explica o artífice - o Pecado Original é funcionalmente necessário para dramatizar a importância da redenção e das práticas religiosas que nele se inspiram. Sua grave existência avaliza a doutrina da expiação, tão cultivada e fundamental para algumas religiões. Simples assim: paradoxalmente, sem o erro primordial não haveria salvação.

O Sapateiro enfatiza que particularmente não se considera um virtuoso, mas tampouco se vê como um incorrigível pecador. Em geral, adota o meio-termo em suas práticas. Procura trilhar o caminho da simplicidade, sem se desviar demais para lá ou para cá. ite, no entanto, que não cultiva a moderação, o equilíbrio espiritual ou a capacidade de evitar certos pontos fracos inatos. Vive uma espécie de mediocridade light. Pratica algumas parcas virtudes e comete, com certa desenvoltura, pequenos deslizes e vícios toleráveis e palatáveis – ao seu entender.

Tem consciência que, e assume perante os parceiros de café, não pratica como deveria a benevolência, a justiça ou a misericórdia. Sabe muito bem que não é jovial, inteligente ou belo; sequer domina a musicalidade, a oratória ou qualquer outra nobre arte. No entanto não se acha um ser execrável: não é verborrágico, não tem caspa, chulé, asa ou mau hálito. Por outra, diz portar indiscutíveis méritos morais, embora se considere um pouco incompreendido por alguns invejosos renitentes.

Ainda, segundo o belga, o homem que tudo teme é um covarde, mas o que nada teme é ingênuo bobalhão. Aqueles que se permitem todos os prazeres, são autocomplacentes e fracos de espírito; mas os que não aceitam nenhum agrado, são tristemente enfadonhos e bárbaros. Ao seu respeitável entender, há que se repudiar tanto o ascetismo exagerado quanto o hedonismo fácil. E reporta a Albert Camus: “É preferível vender a alma a não saber alegrá-la”.

Em meio à rica argumentação que se encaminhava para o final, um gaiato provocativo vai direto ao ponto e pergunta: mestre, e a fofoca, tão praticada por nós em nossa roda de café, no seu entender, é virtude ou pecado?

O calçadista, impávido disfarça o golpe, e afirma ainda não saber como classificar esta doce instituição familiar.

Aliás, e a propósito, a única coisa que tem certeza, é que ninguém está absolutamente certo de nada: somente loucos, idiotas e determinados políticos nunca têm dúvidas. Bastaria esta singela razão para justificar a existência de diferentes versões sobre um mesmo fato.

Daí, portanto, se justificam as bisbilhotices, os mexericos, que, se não constituem grandes virtudes, igualmente não encorpam maiores pecados. As maledicências comezinhas, o falar-mal doméstico, não são como as mentiras e as difamações recheadas de falsidades e ódios. As fofocas são benignas, veniais, caseiras e acabam funcionando como um regulador do convívio social. Se alguns fingimentos existem nestes ditosos cochichos, nada mais constituem que uma radiante e criativa imitação da verdade, com toques, caprichos e refinamentos pessoais – diz o matreiro belga.

Ao encerrar sua prédica, o Sapateiro de Bruxelas evoca o filantropo norte americano Warren Buffet, para quem: “É melhor estar aproximadamente certo que precisamente errado”.

 

 

Dr. Alcides Mandelli Stumpf

Médico e membro da Academia Erechinense de Letras

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