O Sapateiro de Bruxelas anda muito saudoso dos amigos de café, e no seu dizer, um tanto acabrunhado. Sozinho, já octogenário, frequentemente entrega-se à imensa nostalgia e melancólicas reflexões.
Recorda os meados do século ado, quando ainda jovem. Lamurioso, lembra que há cinco ou seis décadas a vida era mais simples. Havia sequência lógica de acontecimentos, quase litúrgica, se cultivavam valores que faziam do nascimento, adolescência, primeiro amor, e até da morte, um cerimonial extenso baseado em tradições imutáveis e dogmáticas.
À época, o tempo não era medido por relógios de alta precisão, e sim pelo espaço entre grandes momentos e pelos rituais, onde se misturavam antigas crenças com alguns modismos s provenientes dos poucos filmes que chegavam à cidade do interior.
Festas religiosas ou profanas, além de acontecimentos familiares, marcavam o ritmo fundamental da existência, na qual os indivíduos levavam por princípio serem educados, corteses e tratar com respeito uns aos outros.
Todos participavam das comemorações abrangentes e inesquecíveis - desde os mais pobres até os mais ricos. Havia iração pública pelas provas de ginetes, futebol amador; se gostava dos circos que volta e meia acampavam por aqui.
Os anos se alternavam entre bons e anos ruins. Tudo dependia da natureza, do tempo e das colheitas. As previsões climáticas ficavam por conta dos mais velhos e experientes. Tinha de benzer tormentas na enchente de São Miguel, que ocorria nos finais de setembro ou início de outubro.
Os homens trabalhavam sem parar na cidade ou no campo; as mulheres, em maioria, cuidavam do lar com zelo e dedicado amor. Ninguém pensava em controlar os acontecimentos, como alguns pretendem fazer nestes dias de desespero em que vivemos hoje.
Embora o mundo fosse bem menor, sobrava espaço e tempo para todos. Mesmo submetidos a tarefas braçais e inadiáveis, as pessoas eram mais livres, donas de si e de seus próprios narizes.
As atividades corriqueiras aconteciam em um nível mais humano; as criaturas conversavam muito umas com as outras, e praticamente todos se conheciam – quando não eram parentes entre si. Faziam trabalhos manuais e artesanais, e durante a doce faina diária falavam-se sem tréguas.
Alguns se davam o luxo de descansar depois do almoço, desfrutavam sestas de dar inveja. Outros jogavam cartas, fumavam palheiros, cuspiam no chão e tomavam café ou um gole de grappa com os amigos.
As crianças fardadas jamais faltavam aulas e reinava um temor reverencial aos mestres professores. Tema de casa fazia parte das obrigações, e a exemplo da dedicação incansável ao trabalho por parte dos pais, era caprichado, limpo, sem erros e terminado em tempo hábil. E ai de alguma reclamação. Depois sim, podiam brincar alegres e soltos na rua até o sol sumir no horizonte. Crianças eram apenas crianças.
Ao final da tarde vizinhos se reuniam para tomar mate e prosear mais um tanto; juntos, contemplavam o entardecer.
Pássaros se acomodavam em seus ninhos nas árvores encopadas dos quintais das casas antigas. Poucas moradias eram construídas em alvenaria; a maioria feita de madeira mesmo, tiradas da mata circundante. Depois dos machados e serrotes vinham as queimadas: surgia o milagre da terra virgem e fértil, que germinada alimentava a todos.
Fazia-se silêncio na Hora do Angelus, seis da tarde, enquanto o rádio transmitia fanhoso a oração da Ave-Maria. Na sequência vinham os tangos – igualmente fanhosos - e nesse momento, sem falar nada, os adultos se perguntavam sobre o sentido da vida e da morte. Ao anoitecer se ouvia ao longe o langor choroso de um violão ou uma gaita mais animada.
O cotidiano se centrava em valores espirituais, atualmente em completo desuso, segundo o artesão. Manter a dignidade pessoal e mostrar desinteresse pelas coisas materiais constituíam virtudes inegociáveis. Atitudes estoicas frente a adversidades eram motivo de respeito e considerações exemplares.
Também era muito recomendável ser e parecer honesto: pagar as pequenas contas em dia, não “ar a perna” nos outros, além de defender a honra a qualquer preço e cultivar o gosto pelas coisas bem feitas. A deferência pelos demais, principalmente senhoras e idosos, não era atitude excepcional e sim obrigatória, desde a mais tenra idade.
Para o Sapateiro, outro valor em franco desuso e deslavado esquecimento na atual sociedade é a vergonha na cara. Ora lhe parece que muitos e muitos indivíduos a perderam de forma definitiva e irreversível. Para seu espanto e pasmo observa a completa sem cerimônia que alguns pilantras - reconhecidos na praça e fora dela - se misturam as pessoas de bem, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo, farinha do mesmo saco. E o pior, o que mais lhe surpreende e desagrada é a igual normalidade com que são aceitos entre os bons, até com certas mesuras ou rapapés pelos ditos probos senhores e demais hipócritas do momento.
Nos tempos idos as famílias dos desonestos, finórios e malandros, ficavam enclausuradas em casa à sombra da desonra, bem diferente da presente época. No entanto, não há como negar, tudo mudou, e pelo poder do dinheiro suas proles são tratadas como celebridades do dia, ainda que fugazes e ageiras.
Lembra o artesão que algo igualmente notável era o valor dado às palavras. Valia mais o fio de bigode que qualquer ou firma reconhecida em cartório. Observa o belga que hoje - a palavra é mais usada como arma para justificar erros ou mal feitos comuns. Todas as interpretações são válidas e as palavras servem principalmente para ludibriar e acobertar atos espúrios, outrora impensáveis. Os políticos eram poucos e rarefeitos, quase todos honestos, alguns até venturosos.
O modo de vida obedecia às peculiaridades de cada localidade, região ou grupo étnico. Não se relativizavam valores. Não havia a globalização que impõe o modos vivendi, uniforme e arrogante. Raízes e costumes eram motivo de orgulho e não de vergonha.
Deste modo, para o velho sábio, tragicamente o mundo a cada dia perde em originalidade e riqueza cultural gerada por seus diferentes povos. Estamos em adiantado estado de pasteurização mental, para não dizer putrefação espiritual coletiva – assevera o artífice do couro.
E acrescenta, todos são “educados”, aculturados e tornam-se alienados da mesma forma e na mesma fôrma. Isso facilita mais e mais o domínio, a acomodação e a final subserviência aos novos donos do mundo e seus operadores eletrônicos e midiáticos.
Entretanto, para o mestre calçadista, paradoxalmente o terrível perigo que nos trouxe a Covid-19, pode ser motivo de esperança geral. Com um pouco de sorte ganharemos a oportunidade de nos redimir.
Mais por mal que por bem, fomos forçados à uma profunda reflexão conjunta calcada no doloroso rastro da pandemia. Surgiram em nossas mentes - com surpreendente vigor- possibilidades de alterar a tendência de nos tornarmos totais idiotas do futuro, escravos dos meios de comunicação de massa - especialmente da televisão, com seus abjetos BBBs e outras excrescências intelectuais.
Para tanto, infelizmente se fez necessária uma crise social, emocional e de saúde sem precedentes em escala planetária, de modo a nos tornar mais sensíveis e humanos, além de resgatar históricas verdades, raízes abandonadas, quase esquecidas no abismo do ado.
Na solidão involuntária do isolamento sanitário, tivemos a oportunidade de entender que estamos de fato perdidos no tempo e no espaço, que temos obrigação - como seres racionais que somos - de reverter com energia e sensibilidade a nefasta tendência que nos constitui em abobalhados adoradores da tecnologia e seus derivativos inócuos.
Finalmente, ao arrematar suas divagações, o Sapateiro de Bruxelas diz que no momento, ante o quadro desesperador gerado pela doença mundial, os anseios se afirmam os mesmos dos tempos ancestrais, simples como flores do campo ou os cogumelos do outono. Os pedidos mais prementes nas orações desesperadas voltaram a ser comida, saúde e trabalho.
Ao encerrar lembra citação do escritor israelense Best Seller, Yuval Noah Harari, em recente artigo no Financial Times: “Toda a civilização está a apenas três refeições da barbárie”.
Médico e membro da Academia Erechinense de Letras