Nestes dias de pandemia, em que sou obrigado a permanecer ao lar, tenho usado o tempo disponível, entre as infindáveis reuniões de trabalho pela internet, a alguns hábitos agradáveis que colaboram para a manutenção da minha - já um tanto combalida - saúde mental.
Há variantes que foram expandidas no decorrer do período de isolamento social que certamente colaboram para sobrevivência deste modesto escriba.
Nas folgas, principalmente aos finais de semana, tenho me entregado ao desfrute de apreciar, quase que religiosamente, a literatura, música e cinema.
Hoje, por motivos pertinentes, vou dedicar meus breves escritos à terceira. Mais especificamente a um grande filme que tornei a assistir na tarde do último domingo.
Trata-se de O Pianista, película franco-germano-britano-polonesa de 2002, dirigida por Roman Polanski, baseada na autobiografia homônima do pianista Wladyslaw Szpilman, magistralmente interpretado por Adrien Brody, durante a Segunda Grande Guerra Mundial.
Basicamente, o enredo acontece quando a SS, organização paramilitar ligada ao Partido Nazista Alemão, assume o controle de Varsóvia, a partir da invasão da Polônia, em setembro de 1939. As condições de vida da população judia rapidamente se deterioram e seus direitos são retirados - as limitações vão da restrição de atividades laborais à supressão de liberdades individuais. Os judeus am a ser obrigados, também, a usar faixas nos braços com a Estrela de David em azul para serem identificados. Então, no fim de 1940, são forçados a ir para o Gueto de Varsóvia, onde são segregados. No maior gueto de toda a Europa, a população judaica, que representava cerca de 30% dos moradores de Varsóvia (375 mil pessoas), é confinada numa área equivalente a 2,4% do território da cidade.
Lá, enfrentam fome, perseguição, humilhação e o medo sempre presente da tortura e da morte - destino da imensa maioria dos judeus de Varsóvia, seja no próprio gueto ou no campo de extermínio de Treblinka, a 60 km dali. Ao final da guerra, em 1945, restaram pouco mais de 11,5 mil judeus vivos na cidade.
O filme, que retrata a quase milagrosa trajetória de sobrevivência de Szpilman - e sua incrível capacidade de emocionar ao piano -, revela o sadismo nazista e mostra os horrores infligidos às famílias judias com cenas de extremo realismo e grande apelo a sensibilidade.
Choca, destroça o espírito e arrebenta a alma. Faz pensar.
Particularmente, ao final da sessão, me vi reando a restrição do trabalho, o fim da liberdade individual e a tarja de Davi, que saiu do braço e veio para face em forma de máscaras, nos dias atuais. E senti medo, muito medo.
Também revi os cadáveres deixados pelos becos e vielas do gueto imundo. Só de judeus, seriam mais de 360 mil - e isso apenas em Varsóvia, palco de Szpilman.
Fiquei por minutos paralisado, boquiaberto, taciturno, refletindo sobre nossa vida e seu inexorável - e às vezes pouco honroso - fim.
Aí, ainda um tanto atordoado, cometi o grande erro de zapear os canais da TV a fim de desanuviar e acompanhar as notícias do dia. Eis que surgiu a ‘breaking news’: o Brasil havia registrado mais de 180 mil mortes em decorrência da Covid-19.
E o pior veio depois: parte expressiva da população, alheia à catástrofe, parecia ter abandonado qualquer cuidado em relação à praga. Milhares e milhares de pessoas lotavam praias, curtiam festas coletivas, imensas aglomerações, como se não houvesse amanhã. Realmente talvez, para muitos, não haveria mesmo...
Voltei a ver as pilhas de mortos do filme de Polanski incinerados nas calçadas de Varsóvia. Imagens terríveis retornavam implacáveis ao meu pensamento.
E me perguntei: por que as cenas de um filme parecem sensibilizar mais do que os fatos da vida real?
Tentando encontrar uma resposta razoável, imaginei que pudesse ser porque os nossos mortos, os mortos da pandemia, se vão em silêncio, sozinhos, amputados de suas famílias; não há o direito à despedida digna; a população não enxerga a mortandade; mortos não permanecem nas ruas deste grande gueto em que se está transformando o mundo.
Estamos inertes, sedados pela ignorância, curvados às estatísticas. A grande imprensa de forma criminosa politiza a desgraça. Os políticos caem como patos; ainda não perceberam que em breve levarão o troco. Serão tragados pela desgraça.
Com este sinistro arranjo vigente, a dor deixa de ser coletiva e a à seara individual. Sofrem pais, filhos, netos, avôs, todos sozinhos, sem direito a qualquer despedida.
E aqui, num contraponto aos episódios de guerra - à exceção do vírus malígno - não há um ‘inimigo’ a responsabilizar, uma farda a apontar, pois, diferente do conflito armado, não temos uma nação ou um exército lutando contra o outro. Na verdade, o verdadeiro agressor eia nas praças, vai nas ‘baladas’ e frequenta as casas das famílias sem que ninguém perceba sua nefasta presença.
Quando todos deveríamos estar do ‘mesmo lado’ esquecemos dos outros; alguns por soberba, outros por desconhecimento, e outros ainda ou desprezo pela vida do próximo. A capacidade de cooperação que é - ou deveria ser - a nossa principal arma, momentaneamente, parece estar bloqueada, engripada em nossas mãos trêmulas e covardes.
Sim, infelizmente temos hordas dissidentes em nossas tropas - e, em muitos casos, a conduta dos dissidentes é fatal para eles mesmos e também para muitos outros. Não respeitar as regras de distanciamento, ignorar os protocolos de higiene e menosprezar o poder letal da doença deveria ser considerado um ato grave de falta de amor e respeito à humanidade.
Talvez esteja faltando ‘entrarmos no gueto’, procurando entender a dor de cada um para que, de fato, consigamos superar, juntos, esse momento aterrador.
Assim, neste ano de 2020, ao celebrarmos o Natal, o nascimento de Jesus Cristo, Deus Redentor, entendamos que o maior presente a ofertar aos nossos familiares e amigos resume-se a amor, respeito e empatia - como Ele tão bem nos ensinou.
s às famílias e pequenas ceias, vamos permanecer em nossos lares, ressoando em nossas mentes e espíritos dos sinos de Belém e as belas músicas de Chopin interpretadas pelo pianista Szpilman, como no filme que abriu essa crônica.
Por fim, digo que somos protagonistas de um triste roteiro que está sendo escrito dia a dia. Talvez o filme da Terceira Grande Guerra já esteja em curso, com milhões de mortes e sem seja disparada sequer uma bomba, uma granada, um mísero tiro.
Porém, ainda acredito que podemos surpreender no final e sobreviver. Viver em paz. Vencer.
E para quem não acredita na dura realidade, e insiste em disseminar o mal sem o menor senso de respeito ao semelhante, recomendo outra obra prima de Polanski. Essa de 1967, estrelada pelo próprio Polanski e sua esposa, Sharon Tate – brutalmente assassinada por fanáticos de uma seita de jovens maníacos, quando estava grávida de nove meses, em 1969. Nome do filme: A Dança dos Vampiros. Gênero: terror.
Médico e membro da Academia Erechinense de Letras