Em um quarto de Hospital, um homem está morrendo. Tivera uma vida boa e plena. Fora um favorito do teatro operístico. Provara do triunfo nos palcos de diversos países e plateias variadas. Conquistara fama como cantor lírico. Tinha amigos leais. Agora, porém, a morte batia a sua porta. Enquanto saboreava o auge da vida, com a música e o sucesso ainda adoçando a boca, a cortina ia descendo. A última performance havia acontecido na sacada de seu apartamento, no Parque Moinhos de Vento, dedicada aos profissionais da saúde no decorrer da Pandemia Covid-19, que algumas semanas depois calou sua voz para sempre.
A música erudita do Rio Grande do Sul, no dia 8 de abril de 2021, perdeu um de seus maiores talentos. E nós, perdemos um grande amigo. A súbita partida do cantor lírico gaúcho, professor Decápolis de Andrade, aos 77 anos, deixa um vazio que, outrora, era preenchido pelo seu gentil coração e melodiosa voz.
Não há como esquecer seu imenso carisma pessoal, o olhar vivo e ao mesmo tempo espiritualizado ao se deparar com as pequenas e grandes coisas de sua e das nossas vidas, que eram compartilhadas noite adentro em conversas alegres, em jantares memoráveis no aconchegante restaurante Ratskeller (Baumbach), o preferido por todos nós.
Não há como esquecer as suas lindas histórias de apresentações como solista no Teatro Colón, de Buenos Aires, onde havia participado do elenco de óperas, tais como Elixir do Amor, Rigoletto e Flauta Mágica. Contava das dificuldades que enfrentou na vida portenha. Nas ruas ordinárias de Buenos Aires conheceu tragédia e comédia, aprendendo que suas fontes são vizinhas.
Também falava muito da sua amada OSPA; lembrava com emoção as atuações em As Bodas de Fígaro, O Barão Cigano, La Traviata e tantas outras.
Particularmente, se faz inesquecível, ouvir de perto, por diversas vezes a sua arrebatadora interpretação da famosa ária do último ato da ópera Turandot, ‘Nessun dorma’, de Puccini; a qual era a sua preferida – o que, imaginamos, explique a naturalidade que tinha para interpretá-la:
“Il principe ignoto
Nessun dorma! Nessun dorma!... Tu pure, o Principessa,
Nella tua fredda stanza
Guardi le stelle
Che tremano d'amore e di speranza”.
(“O Príncipe desconhecido
Que ninguém durma! Que ninguém durma! Nem mesmo você, oh Princesa,
em seu quarto frio,
observando as estrelas
que tremem de amor e de esperança”).
No setor camerístico, Decápolis destacou-se em solos da Nona Sinfonia, de Beethoven; em Réquiem, de Mozart; em Salmos Hungáricos; de Kodaly; na Missa em lá bemol maior, de Schubert; no Rei David, de Honneger. Se fossemos listar todos os feitos artísticos do tenor, regido por maestros como Pablo Komlós, David Machado, Túlio Belardi e Fredi Gerling, correríamos o risco do esquecimento, tantas foram as suas participações.
Assim, optamos por focar, a partir da memória – quiçá imperfeita, no legado que deixou e lembrar das conversas em que nos falava do destino, que nos empurra para lá e para cá no xadrez da vida sem conhecermos o propósito desses movimentos. Embora ele soubesse o destino de cada um que lhe acorresse para consultar sua sabedoria sincrética.
Contava de sua infância difícil. Mas pobreza, para ele, nunca foi uma sentença de prisão perpétua. Foi antes um desafio, e até mais – uma oportunidade. Considerava-se um filho dileto da música e do teatro.
Sozinho, tivera que confiar em seus méritos e em seus próprios esforços e imenso talento. Ficava contente por ter aprendido a ganhar a vida desde moço. Dizia, se tivesse nascido herdeiro de milhões, certamente teria tido uma vida menos interessante.
Portanto, não precisamos lamentar as nuvens negras que toldaram a sua mocidade. Sem elas, seus talentos poderiam ter brilhando menos e o universo musical, particularmente a cultura riograndense, ficariam menores e mais pobres.
Sua energia positiva e sua inteligência vivaz, que caminhavam de mãos dadas com a paixão pelo canto lírico, pela esposa Rita de Paoli, pelos filhos Eluleina, Tariciana e Danahur, e pelos amigos, eram marcantes.
Resta-nos ouvir e apreciar, nos CDs que gravou, suas interpretações vocais que servirão de lembrança para as futuras gerações e de consolo para aqueles que perderam sua presença física.
Nilson Luiz May e Alcides Mandelli Stumpf
Médicos escritores